Passava das 17h de terça-feira, 4 de setembro de 2018, quando a comitiva liderada pelo vice-governador
José Paulo Cairoli ouviu o ultimato da boca do ministro da Fazenda, Eduardo Guardia. A 33 dias do 1º turno das eleições, na sala do Conselho Monetário
Nacional, em Brasília, Guardia foi taxativo.
— O plano de recuperação do Estado não para em pé. Entreguem o Banrisul que
o resto eu resolvo — disse o economista, sob os olhares complacentes de Delfim Netto, Dilson Funaro, Rubens Ricúpero e outros nomes ilustres da galeria de fotos dos ex-
ministros, exposta nas paredes ao redor da mesa de 30 lugares.
Por decisão de José Ivo Sartori (MDB), a instituição bancária
ficou fora da proposta de adesão ao programa de ajuste federal e, portanto, da lista de estatais a serem privatizadas. A conclusão de Guardia teve o efeito de uma bigorna
despencando sobre os ombros de Cairoli, do secretário estadual da Fazenda, Luiz Antônio Bins, e do procurador-geral do Estado, Euzébio Ruschel — também
estavam no local a procuradora Georgine Visentini e o auditor da Receita Estadual Paolo Martinez. Por meses, os três peregrinaram na capital federal e protagonizaram
infindáveis discussões na tentativa de enquadrar o Estado no regime de recuperação fiscal.
— O grupo chegou à
reunião achando que estava tudo certo, que finalmente seria concluído o pré-acordo. Ninguém esperava a reviravolta — conta uma fonte que testemunhou
tudo.
O que os técnicos chamam de "pré-acordo" (espécie de carta de intenções elencando as medidas para sanar as
finanças) é uma possibilidade prevista na lei complementar nº 159, de 2017, que criou o regime. Conforme a norma, o Estado que se credenciar a essa etapa inicial das
negociações pode ser dispensado de privatizar empresas públicas. Para isso, precisa provar que pode reequilibrar as contas sem a venda de ativos ou que o valor da
operação é superior ao benefício previsto com a suspensão da dívida por três anos (no caso do Rio Grande do Sul, R$ 10 bilhões). Desde
2017, essa opção foi encarada pela gestão Sartori como uma brecha jurídica a ser explorada, e as tratativas partiram desse pressuposto.
Entre
os presentes à audiência com Guardia também estavam o titular da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), Mansueto Almeida, e a secretária-executiva do
ministério, Ana Paula Vescovi, conhecidos pelo rigor fiscal. Ambos foram tão inflexíveis quanto o ministro ao exigir a venda do banco, polêmica no Estado.
— Foi pesado. Cairoli ficou p... da cara e disse que não havia nenhuma chance de isso acontecer. Queria até romper relações — relata
um interlocutor próximo.
Em plena campanha eleitoral, o impasse ameaçava a principal promessa de Sartori, repetida à exaustão em
entrevistas, debates e na propaganda de rádio e TV. Ao mesmo tempo, a condição imposta pela equipe econômica era impensável para o candidato à
reeleição.
Na noite do dia 4, apesar do desfecho na capital federal, o site oficial do governo estadual estampava a seguinte notícia:
"Estado avança nas negociações do Regime de Recuperação Fiscal", omitindo o ocorrido.
O clima ficou tão ruim que,
por sugestão do próprio Guardia, foi agendada uma segunda reunião para 11 de setembro. No encontro, foi elaborada a minuta do que foi chamado de "acordo
prévio" com a União. Ao final do documento, ficou registrado que não se tratava do "pré-acordo" mencionado acima, mas de um estágio
anterior a ele. Embora não tenha nenhuma validade oficial, a certidão seria um paliativo para evitar o pior: a queda da liminar judicial que, desde agosto de 2017, livra o
Estado de pagar as parcelas da dívida com a União.
Nada disso teria vindo à tona não fosse a entrevista concedida por Ana Paula
à Rádio Gaúcha na última quarta-feira. Ao afirmar que, sem o Banrisul, havia "impedimento total" à conclusão das tratativas, a
técnica tornou público o que a cúpula do Palácio Piratini omitia desde setembro. Ana Paula também destacou que o Estado não cumpriu um dos
pré-requisitos básicos de admissibilidade: a comprovação de que despende pelo menos 70% da receita com pessoal e pagamento da dívida. Sem isso, nada
feito.
No Piratini, as declarações da economista, que chegou a ser convidada pelo governador eleito Eduardo Leite (PSDB) para assumir a Secretaria da
Fazenda, causaram irritação.
— O que ela ganhou com esse alarde todo? O governo gaúcho sempre deixou claro que o Banrisul não estava
em questão. Se era uma condição tão indispensável assim, por que não encerraram a conversa lá no início? Por que seguiram nos
recebendo? — questiona um integrante do governo Sartori.
Longo impasse
A insistência na venda do Banrisul teve
início em janeiro de 2017.
À época, Sartori e Cairoli foram recebidos pelo então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, para uma
conversa em Brasília. Queriam tratar do regime de recuperação fiscal, que seria instituído por lei quatro meses depois — àquela altura, o Rio de
Janeiro já negociava o socorro federal.
Meirelles resumiu a ideia e ressaltou que as contrapartidas envolveriam alienação de patrimônio.
No caso do Rio Grande do Sul, o Banrisul teria de ser incluído no pacote. Sartori, de imediato, disse não. Em entrevistas subsequentes, o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu
Padilha, definiu a instituição bancária como a "joia da coroa", ao lado da Corsan. O próprio Meirelles confirmou publicamente o interesse pelo
banco.
— O Banrisul vai fazer parte das discussões com o Estado do Rio Grande do Sul e o que mais for necessário — destacou o ministro em
26 de janeiro de 2017.
De fevereiro a abril de 2017, a STN enviou missões técnicas a Porto Alegre para coletar dados na Fazenda. Houve reunião
específica para tratar do Banrisul. Depois disso, o foco das atenções mudou, e a tensão envolvendo o banco ficou em banho-maria.
Discussão sobre despesas com servidores
Praticamente todo o segundo semestre de 2017 foi consumido com discussões intermináveis
sobre o tamanho das despesas do Estado com os servidores. Desde o começo dos anos 2000, esses gastos são calculados com base em critérios estabelecidos pelo Tribunal de
Contas (TCE). Como a metodologia desconsidera custos com pensões, auxílios e outros dispêndios, o percentual de comprometimento da receita dificilmente extrapola o teto
legal, mascarando o real impacto nas contas públicas. Em 2017, por exemplo, o índice não passou de 54,94%, embora, na prática, tenha chegado a 70%.
Os técnicos da STN sempre souberam disso, mas não aliviaram as cobranças. Pelo contrário, passaram a exigir que a Fazenda republicasse
balanços contábeis com o percentual verdadeiro, o que virou um problema. O governo tinha receio de sanções, e os demais poderes nunca tiveram interesse em
alterar a fórmula do TCE, já que seriam obrigados a se ajustar.
Em razão disso, o plano de recuperação entregue em 8 de novembro
de 2017 ao presidente Michel Temer não contemplou a exigência. Resultado: foi rejeitado pela STN dias depois. À época, o então secretário da
Fazenda, Giovani Feltes, classificou a recusa como "esquizofrênica".
Em meio às dificuldades para resolver o imbróglio relacionado às
despesas com pessoal, Sartori e a equipe passaram a apostar no caminho político. Para tanto, pediram ajuda a Padilha e ao presidente Michel Temer.
Como
resultado, a Advocacia-Geral da União (AGU) foi escalada em setembro de 2017 para mediar os conflitos por meio de uma câmara de conciliação. Foram inúmeras
reuniões.
No derradeiro encontro, em dezembro de 2017, ficou acertado em ata que o governo gaúcho faria uma petição ao Supremo
Tribunal Federal (STF), com o apoio da AGU, em busca de segurança jurídica para corrigir os dados de seus relatórios sem o risco de penalidades. Não deu certo. A
AGU voltou atrás, e a busca pelo salvo-conduto nunca foi adiante.
Em outra frente, a administração de Sartori consultou o Tribunal de
Contas do Estado sobre as consequências de republicar os balanços para atender às exigências da STN. Em março deste ano, o conselheiro Cezar Miola informou
que, em tese, sanções poderiam ser aplicadas, mas deixou aberta a possibilidade de se rediscutir, no futuro, os critérios adotados pelo TCE. De lá para
cá, nada mudou.
Até setembro deste ano, foram mais de 80 viagens a Brasília para tratar do acordo que nunca aconteceu. A partir de janeiro de
2019, com a mudança nos governos estadual e federal, o desafio de Eduardo Leite (PSDB) será ainda maior. O sucessor de Sartori terá de retomar as
conversações e, se quiser cumprir a promessa de campanha de não mexer no Banrisul, será preciso convencer o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, de que o
banco deve permanecer público — lembrando que Guedes é um defensor ferrenho das privatizações e até criou uma secretaria para esse fim.
Ao mesmo tempo, o tucano terá de agir no STF para assegurar a manutenção da liminar da dívida. Caso a decisão seja revista, a
projeção de técnicos da Secretaria da Fazenda é de "caos nas contas". Hoje, a insuficiência de caixa já passa de R$ 1 bilhão por
mês. Com as parcelas devidas à União, serão mais R$ 300 milhões.
O que diz o vice-governador José Paulo
Cairoli
De acordo com o vice-governador, responsável por conduzir as negociações do governo gaúcho com a União, desde a
primeira reunião com Eduardo Guardia, ainda na condição de secretário-executivo do Ministério da Fazenda, foi colocado pelo Piratini que a
privatização do Banrisul não estava em discussão.
Em 4 de setembro, segundo Cairoli, Guardia, agora na posição de
ministro, teria dito que havia dificuldades técnicas para adesão ao regime de recuperação fiscal e que "se o banco fosse colocado", o governo federal
"buscaria alternativas".
Cairoli ressalta que, para os técnicos da Secretaria do Tesouro Nacional que participam das negociações,
é "evidente que o patrimônio do Banrisul reduz a dívida do Estado, e que a área técnica enfatize isso".
Documentos da
negociação mostrariam que a situação fiscal do Estado seria regularizada a partir do quarto ano, sem necessidade de venda do Banrisul.
Conforme o vice-governador, o acordo prévio para adesão estava pronto para ser assinado durante a eleição mas, por decisão do governador José Ivo
Sartori, não foi finalizado para evitar críticas de uso eleitoral. Agora, diz, essa assinatura deve ocorrer em breve. Cairoli aguarda posição de Guardia sobre
definição de uma data com o presidente Michel Temer.