A aposentada Virgínia Pereira de Campos, 53 anos, carrega na bolsa receitas datadas de outubro de 2013 e janeiro de 2014. Nos últimos
meses, ela exercitou a paciência – uma virtude adquirida diante das limitações impostas pelo diabetes – ao peregrinar por postos de saúde em busca de
dois medicamentos, a sinvastatina e a insulina regular.
Apesar da dificuldade de locomoção, Virgínia, que reside na zona sul da Capital,
já esteve em três unidades de saúde desde o início do ano para obter a sinvastatina. Todas as vezes, a resposta dos atendentes era a de que o produto estava em
falta.
No caso da insulina regular, no decorrer de um ano, a aposentada conta ter sido informada na unidade que frequenta, a Moradas da Hípica, de que a
medicação deveria ser retirada em outro posto. Na tentativa de buscar o remédio em outro local, era mandada de volta para a unidade do seu bairro.
– Não posso ficar caminhando. Se caminho um pouco, logo estou morrendo de dor nos pés – diz.
Secretaria reconhece escassez de
produto
Quando ZH conversou com a aposentada, em meados de abril, ela havia decidido que iria comprar a sinvastatina, após três meses de espera
pela medicação. Virgínia resolveu insistir pela última vez, atendendo a um pedido da reportagem, que a acompanhou até a Unidade Básica de
Saúde Moradas da Hípica. Passados alguns minutos, ela deixou o posto com caixas de medicamentos em mãos.
– Até a insulina regular
me deram – ressaltou, acreditando que a presença da reportagem tenha contribuído para o atendimento da demanda.
De acordo com a Secretaria Municipal
da Saúde, houve interrupção no fornecimento da sinvastatina, entre fevereiro e abril, por conta de um contratempo ocorrido no laboratório que repassa o produto.
Quanto à insulina regular, a pasta nega que tenha havido problema no repasse do medicamento.
Jogo de empurra nas explicações
A desorganização nos estoques de medicamentos no Rio Grande do Sul se reproduz nas explicações do poder público para o desperdício
de produtos.
A Secretaria Estadual da Saúde (SES) responsabiliza o Ministério da Saúde por boa parte da perda de remédios, e o
ministério devolve a culpa para a pasta estadual, em um jogo de empurra.
A secretaria afirma que o governo federal envia mercadoria com prazo de validade
curto ou em quantidade superior ao necessário para o Rio Grande do Sul. O repasse de excedente seria uma medida estratégica, para atender a programas como DST/Aids e
Saúde da Mulher.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde afirma que manda aos Estados o montante solicitado pelas secretarias e que a
remessa é acrescida de um volume extra – também definido pelas próprias pastas estaduais – destinado à formação de um estoque
preventivo.
“Cabe destacar que compete às secretarias de Saúde a organização dos estoques, manutenção de
condições adequadas de armazenamento e critérios corretos de descarte dos produtos. Todos os medicamentos enviados pelo ministério respeitam os critérios
de validade e de qualidade dos produtos”, diz o Ministério da Saúde, em nota enviada a ZH.
Relação entre governo e
judiciário tem falhas
O descompasso no setor público igualmente aparece na relação do governo estadual com o
Judiciário. Segundo a diretora da Assistência Farmacêutica do Estado, Simone Pacheco do Amaral, o descarte de produtos também ocorre porque itens obtidos pelos
cidadãos por via judicial não são retirados.
Ela explica que a Justiça obriga o Estado a comprar as medicações, mas, ao mesmo
tempo, determina o bloqueio e repasse de parte do valor ao beneficiado para garantir o início imediato do tratamento. Como a secretaria não é avisada, adquire o
fármaco e acaba ficando com excedente em estoque. Como são medicações específicas, o Estado tem dificuldades de fazer o remanejo.
Após os apontamentos do TCE, foi implantado inventário eletrônico mensal e criado um grupo para monitorar os prazos de validade e realizar o remanejo de estoques entre
cidades. A secretaria também passou a não aceitar o recebimento de lotes de medicamentos com mais de 20% do prazo de validade transcorrido.
Os resultados
dessas ações demoram para aparecer. Em 2013, o volume de produtos vencidos cresceu 64,3% em relação a 2012. Simone ressalta que o almoxarifado central recebeu R$
608 milhões em medicações no ano passado, contra um total R$ 439 milhões em 2012.
Ela também explica que houve incremento de 16%
na demanda judicial em 2013 – chegando a 60,7 mil usuários com tratamentos pagos pelo Estado após uma decisão da Justiça – e que 22% do valor em
medicamentos vencidos no ano passado são referentes ao oseltamivir (tamiflu).
– O descarte sempre vai acontecer. O que se tem de fazer é estimular o
uso racional. É uma questão de bom senso – diz Simone.
Sobre as condições precárias do almoxarifado – apontadas pelo TCE
–, a SES informa que foram efetuadas melhorias na estrutura e que um projeto de climatização está em andamento.
AS
EXPLICAÇÕES DA SECRETARIA
- Medicamentos são enviados pelo Ministério da Saúde com “prazo de validade curto”,
o que aumenta “significativamente” o percentual de perda. Também são repassados itens em excesso, por uma questão estratégica, para atender programas
como DST/Aids.
- Há necessidade de adquirir medicamentos para enfrentar possíveis epidemias, como o caso do H1N1.
-
Usuários obtêm acesso ao tratamento por via judicial, mas acabam não retirando parte dos remédios porque a Justiça também determina o repasse direto
de recursos aos beneficiados para a compra dos produtos.
- Havia déficit de farmacêuticos no almoxarifado central. Os profissionais passaram de
três para 10 nos últimos quatro anos.
- A SES reconhece que havia “gestão deficitária” do almoxarifado central, que estava sob
responsabilidade da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (Fepps) até o ano passado. Agora, o setor está sob controle da
pasta.